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Reconhecimento jurídico dos animais como seres sencientes

  • Foto do escritor: Adv. Márcia Bohrer
    Adv. Márcia Bohrer
  • 12 de set.
  • 4 min de leitura

"O sistema jurídico brasileiro passou décadas classificando os animais como “bens móveis semoventes”, o que impedia seu reconhecimento como sujeitos de tutela jurídica própria. Contudo, com o crescimento da sensibilidade ética e das discussões legislativas e judiciais, surge a proposta de um novo modelo normativo para tratar os animais como seres sencientes.

O Projeto de Lei nº 4/2025 propõe a introdução do artigo 91-A no Código Civil, reconhecendo expressamente os animais como “seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria”. Essa proposta dialoga diretamente com o voto vencido do ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva no REsp 1.944.228/SP, que antecipou, com argumentos jurídicos e filosóficos, essa transformação legislativa.


Dissolução de união estável e destino dos animais

O Recurso Especial 1.944.228/SP analisou o caso de seis cães adquiridos por um casal durante união estável. Após a separação, surgiram disputas sobre a divisão de despesas relacionadas aos animais. O  ministro Marco Aurélio Bellizze, redator para o acórdão na 3ª Turma, manteve a classificação dos animais como bens e negou o direito à partilha de despesas no caso concreto, por entender que a posse fora assumida integralmente por uma das partes.

O voto vencido do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, contudo, foi além. Invocando normas e experiências internacionais, sustentou que os animais não podem ser tratados como meras coisas. Citou o artigo 515-14 do Code Civil francês, que reconhece os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade” e submetidos a leis específicas. Referiu-se ainda ao § 90a do BGB (Código Civil alemão), segundo o qual “os animais não são coisas. São protegidos por leis especiais”. Da mesma forma, trouxe o exemplo de Portugal (artigo 1.305.º-A do Código Civil) e da Espanha (artigo 333 bis do Código Civil), onde reformas legislativas consolidaram a noção de seres sencientes.


Vanguarda do voto vencido: Direito Comparado e valores éticos

O voto vencido mostra-se em consonância com os marcos internacionais mais avançados. Não apenas incorpora legislação estrangeira, como também dialoga com o princípio da dignidade dos animais, fundamento ético presente na Declaração Universal dos Direitos dos Animais (1978), que reconhece sua capacidade de sofrimento e direito à existência condizente com suas condições naturais.

A proposta do ministro Cueva se destaca ao afirmar que, embora o ordenamento ainda os classifique como bens, os animais exigem um regime jurídico próprio, intermediário entre os objetos e os sujeitos de direito, o que chamou de “terceiro gênero”. Essa compreensão, também compartilhada por outros precedentes do STJ (REsp 1.713.167/MG), reflete a complexidade das relações afetivas que permeiam a convivência entre humanos e animais.


Consolidação Legislativa no PL nº 4/2025

O PL nº 4/2025 propõe a inserção da Seção VI – Dos Animais – no Código Civil, estabelecendo que:

“Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.”

O § 2º do dispositivo estabelece que, até que haja regulamentação específica, aplicam-se aos animais, subsidiariamente, as regras dos bens, desde que compatíveis com sua sensibilidade. Essa previsão normativa reproduz quase integralmente os modelos estrangeiros já adotados na Alemanha, França, Portugal e Espanha, reconhecendo formalmente a distinção entre bens inanimados e seres sencientes.


Implicações práticas: famílias multiespécie e guarda compartilhada

A realidade social tem impulsionado a mutação do conceito de família, dando origem ao reconhecimento jurídico das chamadas famílias multiespécie. Como demonstram Migliavacca e Kellermann (2019), a guarda compartilhada de animais já é objeto de decisões que aplicam analogicamente os regimes de guarda de filhos menores.

A doutrina vem sustentando que, em caso de dissolução de vínculo conjugal, devem ser assegurados critérios de bem-estar animal, divisão de encargos e direito de convivência. Carli (2020) também reforça essa tendência ao discutir a (im)possibilidade de alimentos para os animais, propondo uma leitura evolutiva da responsabilidade pós-relacional com base no vínculo afetivo e na função social da tutela animal.


Conclusão

A análise do REsp 1.944.228/SP e do PL nº 4/2025 revela que o Direito Civil brasileiro está em transição para um novo paradigma: da coisificação à sensibilidade. O voto vencido do ministro Cueva revela-se um marco teórico e jurisprudencial, antecipando os rumos do legislador e alinhando-se às tendências normativas do direito comparado.

A inclusão dos animais como seres sencientes no Código Civil não apenas representa um avanço legislativo, mas reflete uma mudança profunda na percepção ética, social e jurídica das relações entre humanos e animais. O reconhecimento de um terceiro gênero – nem pessoa, nem coisa – aponta para um modelo pluralista, sensível e adaptado à complexidade das relações contemporâneas."

 

Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.944.228/SP: aRel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª T., j. 07 nov. 2022, DJe 14 nov. 2022.

BRASIL. Projeto de Lei n. 4, de 2025. Altera o Código Civil para dispor sobre os animais como seres sencientes.

CARLI, Helio Sischini de. A (im)possibilidade de concessão de pensão alimentícia para os animais de estimação. Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões, p. 56-60, 2020.

MIGLIAVACCA, Carolina Moares; KELLERMANN, Larissa Florentino. A guarda compartilhada dos animais domésticos a partir da dissolução matrimonial: estudo de caso. Juris Plenum, ano XV, n. 87, p. 15-22, maio 2019.

ALEMANHA. Bürgerliches Gesetzbuch – BGB. § 90a. Tradução livre. “Animais não são coisas. São protegidos por leis especiais.”

ESPANHA. Código Civil Espanhol. Art. 333 bis. Redação dada pela Ley n.º 17/2021.

FRANÇA. Code Civil. Art. 515-14. Redação de 18 fev. 2015. Disponível aqui.

PORTUGAL. Código Civil Português. Art. 1305.º-A, com redação dada pela Lei n.º 8/2017. Diário da República n.º 45/2017, Série I de 2017-03-03.


Fonte: site Conjur. Publicado em 28 de agosto de 2025. Acesse texto original aqui. Escrito por. Fernanda Mathias de Souza Garcia.

 
 
 

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