Adaptações razoáveis para servidores públicos autistas: entraves e perspectivas
- Adv. Márcia Bohrer

- 26 de ago.
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"A exclusão das pessoas com deficiência não é um fenômeno recente, nem restrito a uma cultura ou período. Ao longo da história, distintas sociedades desenvolveram formas específicas de marginalização, visíveis em práticas de eliminação, invisibilização, segregação e controle. No Brasil, essas formas também tomaram diferentes roupagens ao longo da história: desde os rituais de eliminação em certas sociedades indígenas, passando pelo assistencialismo caritativo de matriz jesuítica, pela violência estrutural da escravidão, até chegar à institucionalização da deficiência como desvio a ser corrigido.
Essa trajetória, porém, não foi de passividade. A partir da segunda metade do século 20, o surgimento de organizações de pessoas com deficiência e o reconhecimento de suas demandas políticas introduziram uma inflexão no debate jurídico. A experiência concreta da exclusão passou a ser nomeada, narrada e denunciada pelos próprios sujeitos vitimados. Diversos marcos normativos consolidaram esse movimento no país, como o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (1981), a Constituição de 1988 e, mais adiante, a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com força constitucional (Decreto nº 6.949/2009).
Esses avanços normativos indicam uma transição do paradigma da tutela para o da participação. Não se trata mais de admitir exceções individuais em um sistema excludente, mas de reconhecer que a deficiência, em grande medida, é produzida pela forma como as instituições sociais se organizam. O dever do Estado, nesse novo horizonte, não se limita a evitar discriminações formais, mas exige a supressão de barreiras estruturais e a garantia de condições equitativas de participação.
No âmbito das relações de trabalho, essa transformação implica revisar a própria concepção de capacidade laboral. Cabe ao poder público, enquanto empregador e ente normativo, assegurar ambientes acessíveis, compatíveis com a diversidade funcional de seus quadros. A presença de servidores com deficiência não deve ser tolerada como exceção, mas assumida como expressão legítima da pluralidade que constitui o corpo social.
Desafios específicos do TEA
Dentro do amplo espectro das deficiências reconhecidas pela legislação brasileira, o transtorno do espectro autista (TEA) representa um dos maiores desafios contemporâneos à efetivação desses compromissos constitucionais. Trata-se de condição de base neurológica, cujas manifestações variam amplamente entre os indivíduos, mas que frequentemente envolvem alterações na comunicação, na interação social, na regulação sensorial e na previsibilidade das rotinas. A despeito disso — ou justamente por isso —, as adaptações razoáveis requeridas por pessoas autistas costumam ser sistematicamente negligenciadas no ambiente institucional, inclusive em órgãos públicos.
O Censo Demográfico de 2022, realizado pelo IBGE, trouxe pela primeira vez um dado oficial sobre a população autista no Brasil: mais de 200 mil pessoas declararam diagnóstico de TEA, incluindo aproximadamente 80 mil adultos. Esses números, embora provavelmente subestimados em função de fatores como subnotificação, falta de diagnóstico em adultos e barreiras culturais, já dizem o suficiente: é urgente discutir com seriedade as adaptações que esse grupo demanda, sobretudo no serviço público, onde o Estado tem o dever redobrado de dar o exemplo.
As barreiras enfrentadas por pessoas com TEA no ambiente de trabalho não decorrem, em regra, de limitações intrínsecas, mas da ausência de adaptações razoáveis que permitam sua plena inclusão. O paradigma jurídico contemporâneo exige que a deficiência seja compreendida como produto da interação entre impedimentos individuais e barreiras sociais e institucionais. Assim, o diagnóstico de TEA não implica, por si só, uma incapacidade para o desempenho funcional – e muito menos uma incompatibilidade com a excelência profissional. Pelo contrário: quando o ambiente de trabalho é estruturado para respeitar ritmos, modos de comunicação e necessidades sensoriais específicas, a pessoa autista pode exercer suas atividades com a mesma competência, criatividade e produtividade de qualquer outro trabalhador.
Sendo a garantia de acessibilidade no ambiente de trabalho um dever constitucional da Administração Pública, ao tratarmos de servidores com deficiência, esse dever se traduz na obrigação de implementar medidas de inclusão que permitam o exercício pleno e digno da função pública.
Adaptações razoáveis: dever do Estado, direito do servidor
O artigo 1º, §2º, da Lei nº 12.764/2012 reconhece expressamente as pessoas com TEA como pessoas com deficiência. Dessa forma, aplicam-se ao servidor público autista todos os direitos assegurados às demais pessoas com deficiência, inclusive o direito à acessibilidade e à adaptação razoável no ambiente de trabalho.
O conceito de “adaptação razoável” aparece positivado no artigo 3º, inciso VI, da Lei 13.146/2015, definido como os ajustes e modificações necessários, desde que não imponham ônus desproporcional, para garantir às pessoas com deficiência o exercício de seus direitos em igualdade de condições. Já a Lei 8.112/1990, em seu artigo 98, § 2º, assegura aos servidores públicos com deficiência o direito à jornada reduzida, sem prejuízo da remuneração.
Mesmo com um marco legal consolidado, são inúmeras as estratégias institucionais de esvaziamento de pedidos de adaptação razoável — que vão desde o silêncio absoluto, passando pela transferência de responsabilidade entre setores, até exigências desproporcionais de comprovação ou alegações genéricas de impacto orçamentário. Em muitos casos, o pedido sequer é formalmente analisado, permanecendo em um limbo administrativo que impede qualquer resposta efetiva.
A recusa da administração pública em providenciar acomodações para funcionários com TEA configura uma forma menos explícita de exclusão, que ocorre quando regras ou práticas aparentemente neutras acabam desfavorecendo, na prática, pessoas com deficiência. Tal discriminação indireta contraria o artigo 4º da Lei 12.764, que proíbe tratamento desumano ou degradante, e desrespeita o dever do poder público, previsto no artigo 15 da Lei 13.146, de assegurar ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos.
Negar ou dificultar adaptações razoáveis sob pretextos formais é justamente o que esvazia, em sua raiz, o sentido jurídico da acessibilidade. Quando a legalidade é invocada para bloquear direitos, e não para garanti-los, o que se produz não é neutralidade institucional, mas uma forma dissimulada de exclusão.
A judicialização como saída
Diante da inércia institucional, muitos servidores com TEA têm recorrido ao Judiciário para garantir o que a via administrativa insiste em protelar. A jurisprudência, nesses casos, tem reafirmado o dever da Administração de assegurar adaptações sempre que houver respaldo técnico consistente e nexo claro com o transtorno, reconhecendo que a omissão equivale, na prática, a uma forma de discriminação.
Em abril de 2025, a Justiça cearense reconheceu, em sentença de mérito, o direito de uma servidora municipal com transtorno do espectro autista à redução de 50% de sua carga horária, sem prejuízo da remuneração e sem exigência de compensação [1]. Ao julgar procedente a ação, o juízo afirmou que a proteção conferida às pessoas com deficiência não pode ser restringida pela omissão legislativa local, sobretudo diante da primazia do interesse da pessoa com deficiência e da incidência direta das normas constitucionais e internacionais de direitos humanos. No caso, ficou demonstrada a necessidade clínica da redução da jornada para viabilizar o tratamento contínuo da servidora, sendo inaplicável qualquer restrição infralegal que esvaziasse esse direito.
Na mesma linha, em março de 2025, o Tribunal de Justiça do Acre reformou sentença de primeiro grau para reconhecer o direito de uma agente da Polícia Civil, diagnosticada com transtorno do espectro autista, TDAH e transtorno bipolar, à redução de 50% de sua carga horária, sem compensação e sem prejuízo da remuneração. A decisão assentou que a inexistência de norma estadual específica não pode ser utilizada como fundamento para negar o direito à adaptação, sobretudo diante da comprovação médica da deficiência e da necessidade terapêutica da redução. A corte destacou que a omissão legislativa infraconstitucional não pode se sobrepor à garantia de uma vida digna, ao direito à saúde e à inclusão funcional das pessoas com deficiência no serviço público [2].
O direito a adaptações razoáveis também alcança servidores que, embora não sejam pessoas com deficiência, tenham sob seus cuidados dependentes com deficiência. Ao julgar o Tema 1.097, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento vinculante no sentido de que o artigo 98 da Lei nº 8.112/90 se aplica integralmente a servidores estaduais e municipais, mesmo na ausência de norma local. Nesses casos, a redução da jornada, sem prejuízo da remuneração, também deve ser reconhecida como medida de inclusão — não apenas do dependente, mas da estrutura familiar que sustenta sua dignidade cotidiana.
Diante desse cenário, é preciso reconhecer que já existe respaldo legislativo sólido para assegurar adaptações razoáveis no ambiente de trabalho de servidores autistas. Contudo, nas situações em que os canais institucionais se mostram ineficazes, a via judicial deixa de ser uma escolha e passa a ser o único caminho possível para garantir o cumprimento da lei e a proteção da dignidade dos servidores. Não se trata de buscar privilégios, mas de garantir à pessoa com TEA a possibilidade de desempenhar sua atividade profissional de forma plena, produtiva e digna."
[1] Sentença proferida em 08 de abril de 2025 pelo juiz Francisco Chagas Barreto Alves. Poder Judiciário do Estado do Ceará. 8ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Fortaleza. Processo nº 3008609-36.2024.8.06.0001.
[2] Decisão proferida em 24 de março de 2025 pela Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Acre, sob relatoria do des. Lois Arruda. Processo nº 0713102-41.2023.8.01.0001.
Fonte: site Conjur. Escrito por Leticya Simões e Eduardo Sant’Anna, publicado em 21 de agosto de 2025. Acesse texto original aqui.

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