Milhas aéreas como patrimônio: avanço ou descompasso jurídico?
- Adv. Márcia Bohrer

- 11 de set.
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"O Senado recebeu em meados de abril o projeto de reforma do Código Civil. Uma das alterações trazidas no projeto — a qual equipara milhas aéreas a bens patrimoniais — tem gerado intensos debates nos meios jurídicos e corporativos.
Embora o intuito da norma — garantir maior segurança jurídica e previsibilidade sucessória — seja louvável, é necessário examinar com cautela os impactos dessa mudança no equilíbrio contratual e na sustentabilidade dos programas de fidelidade, notadamente do ponto de vista das empresas aéreas.
Historicamente, as milhas sempre foram compreendidas como gratificações acessórias, vinculadas a programas de relacionamento cujo funcionamento se baseia em critérios comerciais internos, respaldados pelo princípio constitucional da livre iniciativa.
Ao julgar o REsp nº 2011456 em maio de 2024, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que “os pontos do programa de milhas são bonificações gratuitas concedidas pela companhia aérea ao consumidor em decorrência da sua fidelidade, de modo que não está caracterizada a abusividade da cláusula que restringe sua cessão, até mesmo porque, caso entenda que o programa não está sendo vantajoso, o consumidor tem ampla liberdade para procurar outra companhia que eventualmente lhe ofereça condições mais atrativas, o que fomenta a competitividade no setor aéreo e, consequentemente, implica maiores benefícios aos passageiros”.
Essas regras, publicamente divulgadas e aceitas pelos consumidores, permitiam às companhias aéreas manter a viabilidade econômica de um sistema que, embora popular, exige cálculos complexos de precificação, controle de demanda e disponibilidade logística. Transformar esse instrumento promocional em um bem patrimonial rígido pode representar um descompasso entre o espírito do programa e sua nova roupagem jurídica.
A nova legislação determina que milhas acumuladas integrem o patrimônio do consumidor, com possibilidade de partilha em caso de divórcio, transmissão por herança e até mesmo penhora judicial.
Em um capítulo dedicado inteiramente ao tema, o projeto de Lei prevê que:
“Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.Parágrafo único. A previsão deste artigo inclui, mas não se limita a dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtual.”
No entanto, ao classificar conjuntamente itens como milhas, contas de redes sociais e fotos pessoais como “patrimônio digital” com tratamento jurídico semelhante, o legislador cria uma ambiguidade jurídica, pois fotos e conteúdos autorais (como arquivos pessoais ou textos) são, em regra, bens intelectuais protegidos pelo direito autoral — podendo ser transmitidos por sucessão, mas sem implicar dever a terceiros.
Por sua vez, milhas não são, tecnicamente, propriedade do usuário. Elas são créditos condicionados por contrato, regidos por programas de fidelidade, nos quais a companhia aérea estabelece regras de cessão, validade e transmissibilidade. Ao tratar milhas como “bens digitais transferíveis”, o legislador poderia gerar uma obrigação indireta à companhia aérea de permitir essa transferência — mesmo que os termos do contrato digam o contrário.
Nesse sentido, pouco se debateu sobre os desafios operacionais e jurídicos que isso impõe às companhias.
Como quantificar de forma objetiva um benefício cujo valor varia de acordo com datas, rotas, demanda e regras promocionais? Como garantir a previsibilidade dos programas frente a decisões judiciais que podem interferir na lógica privada de sua gestão?
Judicialização
Outro ponto que merece atenção é a judicialização crescente que pode decorrer da medida. Ao trazer para o campo patrimonial um ativo originalmente volátil e condicionado, corre-se o risco de aumentar a insegurança jurídica tanto para as empresas quanto para os próprios consumidores. Regras desenhadas para fomentar fidelidade podem passar a ser interpretadas sob a ótica de obrigações contratuais absolutas, comprometendo a flexibilidade essencial a esses programas.
Há ainda o risco de que o novo entendimento incentive comportamentos oportunistas. A eventual transferência de milhas acumuladas por um cônjuge, ou sua apropriação indevida em litígios sucessórios, pode gerar fraudes de difícil controle, especialmente em um sistema onde o titular é, até então, o único legitimado a operar sua conta. A ausência de parâmetros técnicos para avaliação dessas pontuações apenas agrava esse cenário.
Sem dúvida, a proteção do consumidor e a atualização do ordenamento jurídico às novas formas de valor são objetivos legítimos. Contudo, é imperioso lembrar que os programas de milhagem são facultativos e estratégicos — não obrigações de fornecimento de crédito.
A normatização excessiva pode desestimular investimentos e inovações nesse setor, impactando negativamente a experiência do consumidor, que poderá enfrentar restrições futuras em virtude de um cenário regulatório mais rígido.
O alerta decorre do volume de pessoas que atualmente fazem uso de programas de fidelidade, segundo a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (Abemf) , atualmente há 333,8 milhões de cadastros de usuários cadastrados em programas de fidelidade, considerando números do primeiro trimestre de 2025, além de 219,8 bilhões de milhas/pontos resgatados, também considerando o primeiro trimestre de 2025. Fica evidente que a imprevisibilidade de um ambiente jurídico mais incerto pode desestimular investimentos e inovações no setor.
É necessário, portanto, que o legislador atue com sensatez na elaboração do texto legal, resguardando a autonomia contratual das empresas e reconhecendo as peculiaridades de um sistema baseado em reciprocidade e não em promessa de contraprestação direta.
A legislação deve evoluir, sim, mas sem comprometer a lógica de funcionamento de modelos que, apesar de sua informalidade aparente, são complexos, custosos e fundamentais para a competitividade dos setores que tenham programas de fidelidades em seu modelo de negócio.
Fonte: site Conjur. Publicado em 1º de setembro de 2025. Acesse texto original aqui.

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