Responsabilidade solidária e irrestrita na cadeia de consumo e os riscos à inovação
- Adv. Márcia Bohrer

- 25 de ago.
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"A consolidação, ao longo da última década, de plataformas digitais de intermediação — tais como marketplaces, aplicativos de transporte e soluções de economia compartilhada — vem acompanhada de um crescente volume de decisões judiciais que, sem maiores ressalvas ou digressões, invocam o parágrafo único do artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) como fundamento suficiente para responsabilizar solidariamente qualquer empresa envolvida na cadeia de fornecimento ou prestação de serviços ao consumidor final.
Aparentemente sedutora pela simplicidade com que atribui responsabilidade a todos os participantes da cadeia, essa interpretação maximalista ignora nuances fundamentais do próprio sistema consumerista, desconsidera diplomas legais posteriores — notadamente o Marco Civil da Internet — e cria um ambiente regulatório de incerteza que, paradoxalmente, pode prejudicar os próprios consumidores ao desestimular a inovação e a oferta de novos modelos de negócios.
O dispositivo em questão estabelece que “havendo mais de um responsável pela ofensa aos direitos do consumidor, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos”. A leitura que tem prevalecido nos tribunais é a de que, qualquer agente que, de algum modo, participe da cadeia de fornecimento — mesmo que não seja o diretamente responsável pela ofensa aos direitos do consumidor — seria automaticamente condenado ao dever de indenizar, bastando a comprovação de um dano e o nexo de causalidade genérico entre a atividade econômica e o prejuízo alegado.
Todavia, a aplicação isolada dessa regra contrasta com a arquitetura principiológica do próprio CDC, que também prevê balizas para o reconhecimento de excludentes de responsabilidade e diferenciação de papéis dentro da cadeia de consumo. O artigo 13, por exemplo, limita a responsabilidade do “comerciante” quando o defeito do produto decorre de vício do produto, hipótese em que a reparação recai prioritariamente sobre o fabricante, de modo que o comerciante só tem responsabilidade se não for possível identificar o fabricante (subsidiária). O artigo 14, § 3º, por sua vez, exime de responsabilidade o fornecedor de serviços quando provar culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, ou quando demonstrar a inexistência de defeito na prestação.
Embora elaborados na década de 90, esses dispositivos seguem contemporâneos e ganham nova relevância no contexto digital. Plataformas de intermediação, ao atuarem meramente como ambiente virtual de encontro entre oferta e demanda, frequentemente se aproximam do conceito de “comerciante”, pois não detêm controle sobre a fabricação do bem ou a execução do serviço final. Se um marketplace apenas disponibiliza infraestrutura tecnológica e sistemas de pagamento, mas não interfere de forma determinante no conteúdo das ofertas nem na execução dos serviços contratados, forçoso reconhecer que sua responsabilidade deva ser apreciada à luz de tais excludentes. Em outras palavras, se há culpa exclusiva do vendedor ou prestador autônomo — terceiro estranho à plataforma — não há razão para a presunção automática de solidariedade prevista no artigo 7º, parágrafo único, sem antes analisar os requisitos do artigo 14, § 3º.
Efeito chilling
A necessidade de compatibilização se torna ainda mais evidente após a entrada em vigor do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). O artigo 3º, VI, dispõe que os “agentes serão responsáveis na medida de suas atividades”, revelando opção legislativa expressa pelo tratamento diferenciado dos diversos intermediários, em contraste com a responsabilização automática.
De fato, atribuir responsabilidade irrestrita e solidária a plataformas que atuam como simples facilitadoras contraria a lógica do Marco Civil, que buscou harmonizar a proteção de direitos com a promoção de um ambiente propício ao desenvolvimento tecnológico. Na prática, decisões judiciais que ignoram essa harmonização produzem efeito chilling: ao prever uma rede de responsabilidade ilimitada, desencorajam não apenas players consolidados, mas também startups que pretendem testar modelos inovadores. O resultado é a redução da concorrência, aumento de custos de transação e, consequentemente, majoração de preços ou redução da gama de serviços ofertados ao consumidor — exatamente o oposto do que se pretende com a tutela consumerista.
A responsabilidade objetiva em razão de atividade de risco prevista no artigo 927 também não respalda a condenação solidária e irrestrita. A jurisprudência já reconheceu que a atividade de intermediação virtual não é, na sua essência, uma atividade de risco, como são, por exemplo, o transporte e a construção civil. Assim, exigir das plataformas o dever de garantia absoluta se equipararia, em última análise, a impor seguro obrigatório universal, sem previsão legal expressa, nem análise de causalidade concreta.
Violação de princípios
Sob a ótica constitucional, a leitura maximalista do artigo 7º, parágrafo único, do CDC pode implicar violação dos princípios da legalidade e da proporcionalidade. A ampliação desmedida do âmbito de solidariedade extrapola o comando legal ao suprimir requisitos expressos de nexo causal e excludentes previstos. Tal postura confere interpretação extensiva em detrimento do réu, vedada no âmbito do direito sancionador civil, especialmente quando afeta a liberdade de iniciativa (artigo 1º, IV, e artigo 170 da Constituição). Ainda, ao inverter-se de forma automática o ônus da prova, transfere-se à plataforma o encargo de demonstrar sua não participação no evento danoso, mesmo quando a prova se encontra em poder do terceiro efetivo fornecedor, violando o devido processo legal substancial.
Convém lembrar que o próprio CDC já contém ferramentas aptas a assegurar a proteção do consumidor nessas circunstâncias, sem necessidade de recorrer a uma teoria de responsabilidade solidária universal. Há a possibilidade de redirecionamento da execução para o fornecedor direto, o fabricante ou o prestador de serviço, bem como a inversão do ônus da prova quando presentes verossimilhança da alegação ou hipossuficiência da parte autora (artigo 6º, VIII). A coexistência desses mecanismos com a responsabilidade subsidiária ou eventual da plataforma garante resultado prático equivalente à reparação, e preserva o equilíbrio federativo do ordenamento jurídico.
Do ponto de vista econômico, existem soluções contratuais e tecnológicas mais eficazes para tutelar consumidores e menos intrusivas às plataformas do que a imposição de solidariedade irrestrita. Plataformas investem em sistemas de reputação, selos de verificação, seguro facultativo, mediação de conflitos e bloqueio de vendedores infratores. Esses instrumentos, alinhados às diretrizes de boas práticas e de autorregulação, constituem meios eficazes de reduzir o risco de dano ao consumidor e, ao mesmo tempo, preservar a competitividade do mercado. Entretanto, se a jurisprudência ignora tais mecanismos e insiste em condenações solidárias de forma quase automática, esvazia-se o incentivo para investimentos em compliance, pois o custo marginal de novas medidas preventivas passa a ser inferior ao ônus financeiro imposto pelas condenações judiciais, resultando em “razão cínica” para não inovar.
Diante desse quadro, não se defende a imunidade das plataformas, tampouco a negação do direito do consumidor à reparação. O que se propõe é a adoção de uma hermenêutica sistêmica, que contemple os dispositivos do CDC, mas também dialogue com o Marco Civil da Internet, o Código Civil e os princípios constitucionais. A prática jurisdicional deve exigir demonstração mínima de participação causal da plataforma ou de sua omissão culposa; somente na hipótese de comprovada falha na prestação do serviço de intermediação — como omissão em retirar vendedor reincidente em fraudes, negligência na adoção de políticas de segurança ou desrespeito a ordem judicial — é que se legitima a responsabilização solidária. Caso contrário, deve-se aplicar a responsabilidade subsidiária ou, ainda, reconhecer a excludente de culpa exclusiva de terceiro.
A evolução do comércio eletrônico e da economia sob demanda impõe ao Direito a tarefa de equilibrar proteção do consumidor e fomento à inovação. Ao adotar interpretação absoluta do artigo 7º, parágrafo único, do CDC como panaceia indenizatória, descuida-se desse equilíbrio, sacrificando a liberdade de iniciativa e, em última análise, o próprio interesse do consumidor. Somente pela compatibilização normativa, pela análise casuística das funções desempenhadas será possível promover um ambiente de negócios pujante, seguro e competitivo, no qual todos — consumidores, plataformas e fornecedores — saiam efetivamente beneficiados."
Fonte: site Conjur. Escrito por Isabela Vidigal e Nicole Moreira, publicado em 21 de agosto de 2025. Acesse texto original aqui

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